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Professora negra tem concurso anulado após ser aprovada em primeiro lugar na USP

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O certame para docente de literaturas africanas de língua portuguesa foi invalidado após recurso de outros candidatos contra Erica Bispo.

Professora negra tem concurso anulado após ser aprovada em primeiro lugar na USP

A história

“Meu nome é Érica Bispo. Eu fui aprovada em primeiro lugar para a cadeira de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa na USP, mas a universidade anulou o meu concurso.” Assim começa o primeiro vídeo da professora, publicado nas redes sociais. De voz firme, mas visivelmente cansada, ela narra um processo que vai muito além de uma disputa acadêmica — pode ser o retrato de um racismo velado que insiste em moldar as estruturas do ensino superior brasileiro.

Érica, doutora e pós-doutora, foi a única candidata negra entre os nove concorrentes à vaga. Sua aprovação, no entanto, foi seguida de um recurso impetrado por seis candidatos brancos que alegaram “falta de capacidade” e “suspeição da banca examinadora”. “Eles alegaram que eu tive um certo favorecimento... Mas eu passei por mérito, em primeiro lugar”, afirma ela. Os outros dois candidatos, autodeclarados negros na inscrição, não realizaram a prova.

A anulação do concurso, segundo Érica, foi fundamentada em um argumento que beira o absurdo: a suposta “amizade íntima” entre a candidata e duas professoras da banca. A prova? Seis fotos tiradas em eventos acadêmicos realizados entre 2019 e 2022 — no Rio de Janeiro, em Moçambique e em Natal —, todas em contextos profissionais.

“São fotos em grupos, de congressos da área, e definitivamente não provam uma amizade íntima. A procuradoria da USP considerou essas fotos e uma legenda com a frase ‘entre amigos é muito bom’ como prova cabal para anular o concurso”, explicou a professora.

As imagens, segundo ela, foram tratadas como indícios de favorecimento, ignorando que os cinco membros da banca atribuíram notas altas e consistentes em todas as etapas do processo. “Não houve favorecimento algum. O concurso foi anulado por um mero indício”, denuncia.

Defesa ignorada e direito negado

O episódio se agrava quando Érica revela que sua defesa sequer foi considerada no processo administrativo que culminou na anulação do concurso. “Quando eu fui notificada, me manifestei por e-mail dentro do prazo, mandei mais de uma manifestação — inclusive uma técnica, elaborada pelos meus advogados. Quando o processo foi julgado, descobri que essa defesa não foi incluída”, afirma.

Em outras palavras, a Universidade de São Paulo, referência mundial em produção de conhecimento, segundo Érica, negou à professora o direito constitucional à ampla defesa. “O Conselho Universitário votou sem ao menos ter ciência daquilo que eu estava argumentando para me defender. A USP não só validou acusações frágeis, como também não garantiu que eu tivesse direito à defesa”, lamenta.

A Congregação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas — primeira instância do processo — havia rejeitado o recurso dos candidatos e homologado a aprovação de Érica. Foi apenas nas instâncias superiores, sob parecer da Procuradoria da USP e do Conselho Universitário, que o concurso foi anulado. Ou seja, a decisão favorável à professora negra foi derrubada pela alta cúpula da instituição.

“A alta cúpula da universidade optou por ignorar a decisão da congregação e validar uma narrativa que questionava o mérito de uma professora negra aprovada por unanimidade”, denuncia Érica. Para ela, o caso expõe uma ferida antiga: o incômodo estrutural com a presença de corpos negros em espaços de prestígio e autoridade intelectual.

O incômodo da branquitude

Vozes de solidariedade surgiram de vários setores da academia e da sociedade civil. Em um dos vídeos, a professora Doutora Bárbara Carine, da UFBA, resume o que muitos pensam:

“Erica é uma intelectual incrível e ela é uma mulher negra. Uma mulher negra que chegou. E passou em primeiro lugar numa prova. Eu acho que esse é o grande incômodo da branquitude, que reflete sim o racismo estrutural e a misoginia. Não acredita que mulheres negras são qualificadas o suficiente para chegar até lá.”

A fala reforça o que Érica traduz em uma frase dolorosa: “Eu entendo que esse recurso tem um caráter discriminatório.”

Racismo institucional e a meritocracia seletiva

O caso de Érica Bispo traz à tona o debate sobre o mito da meritocracia que a universidade pública brasileira ainda insiste em sustentar. Quando uma mulher negra atinge o topo, as regras mudam. A mesma instituição que se orgulha de seus princípios republicanos e de seu sistema de cotas mostra-se incapaz de proteger uma conquista obtida com mérito e rigor.

A anulação do concurso não apenas fere o direito individual de Érica, mas também mina o esforço coletivo de inclusão racial nas universidades públicas. “Uma instituição do tamanho da USP deveria proteger a lisura de seus processos, proferir decisões baseadas em fatos comprovados e não em indícios”, declarou ela.

A fala da professora encerra sua série de vídeos — e abre, talvez, um novo capítulo de resistência dentro da mais prestigiada universidade do país.

O que a USP diz

Procurada pela Fórum, a USP respondeu através do professor Adrián Pablo Fanjul, diretor da FFLCH: “A FFLCH homologou o resultado, mas outros candidatos fizeram recurso a uma instância superior, o Conselho Universitário. Esse órgão superior, que é o máximo da Universidade, anulou o concurso porque considerou que havia indícios de relações de proximidade da candidata aprovada e indicada com pessoas integrantes da banca. Essa conclusão teve embasamento em postagens em redes sociais em que, além de fotos, havia expressões de amizade. O concurso será refeito.”

Adrián diz ainda que “o processo de contratação da Érica foi iniciado, mas outros candidatos fizeram recurso ao Conselho Universitário, que decidiu pela anulação. O motivo foi a ponderação que o Conselho fez sobre o relacionamento que as postagens em redes sociais mostram. Sendo uma decisão do Conselho Universitário, a FFLCH não tem como reverter, tem que ser revertida na justiça. No momento da inscrição, houve três candidatos autodeclarados negros (PPI) e aprovados pela banca de heteroidentificação da Faculdade, mas apenas a Erica realizou as provas do concurso, sendo que os demais não compareceram.”

A USP termina a resposta dizendo que “O concurso foi reaberto, as inscrições estão em andamento, e a direção da FFLCH espera que a Érica se inscreva.”

Luta na justiça

O escritório Naves e Ribeiro Advogados Associados, que representa os interesses da Profa. Dra. Érica Cristina Bispo, lançou uma nota à imprensa, onde “reitera sua total confiança na reversão deste quadro e na robustez das teses jurídicas apresentadas. O escritório enfatiza que a ação se fundamenta em nulidades insanáveis ocorridas no processo administrativo da USP...”

O escritório enumera quatro motivos fundamentais: a ausência de provas de suspeição, o grave cerceamento de defesa, o arquivamento pelo ministério público e a preclusão, já que a alegação de suspeição da banca foi feita pelos concorrentes somente após a divulgação do resultado, fora do prazo legal.

Por fim, os advogados de Erica afirmam que tomarão “todas as medidas judiciais cabíveis para garantir a suspensão do novo edital e reafirma seu compromisso de lutar até o fim pelo restabelecimento da justiça, da legalidade e do direito da Profa. Dra. Érica Cristina Bispo de assumir o cargo que conquistou por mérito.”

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